Biografia de Maria Vieira da Silva

Maria Vieira da Silva, nasceu a 11 de Novembro de 1926, na freguesia de São Sebastião. Os seus pais Júlio de Sousa da Silva e Isabel Vieira da Silva eram filhos de agricultores e muito pobres. Tiveram vários filhos, sendo Maria Vieira segundo filho, a seguir ao primogénito, por coincidência tendo o mesmo nome do pai, hábito corrente na época.

A sua infância foi igual à de muitas crianças pobres do campo. Escasseavam os brinquedos, o que a obrigava a improvisar e a utilizar objectos que estavam ao seu alcance em casa ou no quintal. Contudo, o tempo não dava para muitas brincadeiras. Desde pequenina, habituou-se a ajudar a mãe nas lides da casa. Era, pois, muito amiga de auxiliar a mãe e ocupava-se dos irmãos mais novos, para isso abandonando os brinquedos. Além de ser muito prestável (serviçal, como se diz nos Açores), era submissa aos pais e obediente aos mais idosos.

Apesar de tímida e acanhada para as pessoas estranhas, nas brincadeiras à soleira da porta com o pai e com o irmão Júlio, revelava-se extrovertida, roçando por vezes a traquinice.

Aos seis anos, já frequentava a catequese como as outras crianças. Na Altura, não era a catequese ensinada por catequistas como hoje, mas pelo Pároco da freguesia. No caso vertente, pelo Pe. Joaquim Esteves, natural dos Altares, homem austero e culto, tendo sido professor no Seminário de Angra e marcado muito positivamente a reputação do Estabelecimento e vários dos seus discípulos, alguns deles mais tarde ilustres oradores.

Foi, pois, na catequese que Maria Vieira bebeu os primeiros ensinamentos sobre a religião cristã. E o Pe. Joaquim a partir de realidade familiar, começava pela Criação do Universo e das próprias pessoas. E como o pai tinha, então, a primazia do poder familiar, isso permitia interrogar os seus pupilos sobre Deus e a Santíssima Trindade?

Nas lições da catequese, o sacerdote, durante dezassete anos, incutiu nas crianças a ideia da repulsa do pecado, o medo das penas infernais, e sublinhava o amor a Cristo e à Virgem Maria. Maria Vieira facilmente assimilou os ensinamentos do Pe. Joaquim Esteves, graças à sua inteligência e curiosidade, apesar de tímida e algo desconfiada. Estes últimos atributos não a favoreciam perante os colegas, dando ela, por vezes, a impressão de inferioridade intelectual. Maria Vieira fez a sua primeira comunhão com seis anos sem dar muito nas vistas, embora depois se revelasse muito curiosa.

Maria Vieira era profundamente religiosa. Rezava diariamente o terço com a família e levava a feito os ensinamentos da catequese. Eram frequentes os pedidos de Jesus inculcados pelo sacerdote: que estudasse mais nos livros, não aborrecesse o pai, nem batesse nos irmãos mais pequenos e não rejeitasse as couves com batatas ou o peixe assado sobre as brasas. Tinha uma grande ternura por Nossa Senhora, usando, desde cedo, uma medalha da Senhora de Fátima, que trazia sempre ao pescoço. Ao mesmo tempo que fazia a sua preparação religiosa, frequentava a Escola Primária do sexo feminino, que funcionava num velho edifício, quase em ruínas, situado junto à Misericórdia de São Sebastião. Apesar das condições lastimosas, fez os exames da 3ª Classe com nove anos e o da 4º com dez, tendo sido neste último aprovada com distinção. Radiante e prazenteira com o resultado obtido, chega da cidade a casa e vai abraçar a mãe, dizendo-lhe: “a senhora professora disse-me que era a mais pequena de todas e a que melhor se portara”.

No dia seguinte, a notícia espalhou-se pela Vila e contava-se as proezas da Maria Vieira na prova oral em que se salientou das restantes colegas. Mas a família por ser muito pobre não pode custear o prosseguimento dos estudos da filha. O pai replicando aos que o saudavam pelo exame com distinção da filha, desculpava-se com as suas poucas posses. Não pode continuar os estudos, que ao menos seja bem vista na freguesia. Isto queria significar: obediência, respeito e cumprimento dos deveres religiosos.

Efectivamente, a modéstia, a piedade e o respeito foram qualidades permanentes no seu compartamento diário. Como elucidação do que se afirma, é de referir um episódio passado com o Pe. Joaquim Esteves quando um dia Maria Vieira se apresentou na igreja com um vestido um pouco curto, recebido da América. O sacerdote repreendeu-a, mas como ela era dócil e obediente aceitou a observação e, ao chegar a casa, dirigiu-se à mãe, contando a advertência do Pároco e pedindo logo que o vestido fosse alongado. A mãe compreendeu a preocupação da filha que não queria ofender Jesus nem a Virgem Maria e consertou o vestido.

Outro elemento importante para o retrato da mártir foi o dia da comunhão solene. A Matriz da Vila estava mais linda do que nunca. Maria também estava naquele dia mais curiosa do que era habitual. Tudo lhe parecia irreal, maravilhoso, um sonho jamais experimentado.

De vez em quando, espreitava com olhares furtivos os pais, perdidos entre o povo que enchia por completo a igreja.

Quando se aproximava o momento da comunhão, Maria sentiu algo de indescritível, como pude apurar. Era o céu ali mesmo ao seu alcance. Jesus ia entrar no seu corpo e ela desejaria que fosse uma entrada definitiva, para sempre. Rezou muito e jurou que não o ofenderia mais e seria boa em casa, na escola, na cruzada e em todos os lugares para onde fosse.

Embora tivesse encallhado um dia na catequese com a palavra precoce, Maria Vieira foi mais precoce do que as outras crianças da sua idade, não só pelas conversas mantidas, como sobretudo pelas suas atitudes e comportamentos, como ficou patente nas ajudas em casa e depois com as novas responsabilidades que lhe recaíam sobre os ombros. Nascera um novo irmãozinho e os pais concordaram que Maria fosse a madrinha do récem-nascido. “Uma grande honra – pensava ela e o miúdo teria de lhe obedecer quando crescesse.” Este facto veio aumentar-lhe o sentido de responsabilidade. Era preciso preparar tudo, o berço, as roupinhas do bebé para o dia do baptizado, escolher o nome que, após muitas hesitações e conversas com o irmão Júlio, seria José, como o santo do mesmo nome, protector de Jesus e esposo de Nossa Senhora.

O lar de Júlio de Sousa fora invadido pela doença: a irmã Dolores debatia-se na cama de folha de milho com um horrível tifo que lhe provocava muitas hemorragias e a morte rondava o berço do afilhadito. Então, Maria Vieira com pouco mais de treze anos, agia como uma pessoa adulta, preocupando-se muito com os seus dois doentes, desdobrando-se, maternalmente, em iniciativas para os distrair. Pela primeira vez, sentiu os presságios da morte, mas sem pensar que ela estava tão perto dela como dos irmãos doentes. E ao mesmo tempo evocava os ensinamentos da catequese e da cruzada. A imagem do Cristo crucificado e sua mãe destroçada pela dor surgia como uma espécie de lenitivo para a acalmar e dar coragem.

Essa coragem iria ser posta à prova no fatídico dia 4 de Junho do ano da desgraça de 1940, quando Maria Vieira e sua irmã Lídia Vieira de quatro anos iam levar o almoço ao pai que trabalhava nuns cerrados, nas imediações do Pico dos Cornos. José Quinteiro au aproximar-se das duas crianças, abrandou a marcha e, segundos depois, estacou diante delas. Maria Vieira ia com um vestido em decúbito dorsal, a cabeça ligada com uma ligadura de cor branca. Envergava um vestido de chita amarelo, camisa e calcinhas de pano de algodão, meias cor de canela e alpercatas brancas com sola de borracha. Levava presa na camisa, com um alfinete de ponta fendida, uma medalha de Nossa Senhora de Fátima. Depois o cinquentão barra-lhes a passagem e como exímio sedutor começa a assediar a Maria Vieira com falinhas mansas, procurando indagar donde vinha, onde estava o pai. A adolescente respondeu-lhe, prontamente, que “o pai estava a sachar em uns cerrados além do pico”. De seguida, Quinteiro pôs-lhe a mão sobre a cabeça, agarrou-a com intuitos libidinosos e disse-lhe “Estás a ficar uma pequena perfeita” e tentou beijá-la ao que ela, energicamente, se recusa, começando a gritar. Debate-se com o sedutor e tenta fugir em direcção a casa. Mas o assediador tapa-lhe a boca. Ela resiste e consegue dar mais um grito. “Cala-te, se não eu mato-te!” E como ela não cedia aos seus baixos intentos, imobilizou-a e levanta-lhe as saias para a violar. Maria Vieira tenta desprender-se dele, tentando fugir, o que consegue por breves instantes, mas o sedutor agarra-a, mais uma vez, e grita-lhe no ouvido: “Cala-te se não eu mato-te.”

Receando o que lhe pudesse acontecer, José Quinteiro, sabendo que atacara aquela menor vai em sua perseguição e vibra-lhe, com uma enxada que levava, uma violenta pancada na cabeça que a prostrou, imediatamente por terra. A irmãzinha, de quatro anos apenas, vendo aquilo foge desvairada. José Quinteiro agarra Maria Vieira e vai conduzi-la para um lugar mais encondido, no interior do mato. Transporta-a às costa cerca de dez metros por entre faias e canas e, depois de arremessá-la para o chão, vibra-lhe com a enxada várias pancadas na cabeça com a intenção de a matar.

A Lídia, não vendo a irmã, vai chamar pelo pai. Ao chegar ao cerrado onde o pai trabalhava, pôs-se a gritar “um tio quer matar a Maria”. Júlio corre, apressadamente, pelo mesmo caminho que as duas filhas haviam tomado. Tudo em vão. O destroçado e desafortunado pai não encontra a sua querida Maria. O que terá acontecido à minha filha? Júlio corre tresloucado pelos cerrados do Rosto do Cão e pela Canada do Sargo fora até que, finalmente, chega perto de casa. Antes de entrar a porta de casa, grita: a nossa Maria já chegou?! A esposa aparece à porta da cozinha, surpreendida, por ouvir a voz do seu homem ali, àquela hora. Um terrível pressentimento dilacera o coração daquela pobre mãe.

Júlio volta, de novo, pelo mesmo caminho, descontrolado e convencido que houvera uma tragédia. Procura em todos os recantos o corpo da filha. Chama por ela. Após incontáveis buscas, finalmente, cerca do meio-dia ouve gemidos entre o mato. Dá mais uns passos e vê um vulto. Que estou a ver?! Era a sua Maria prostrada no meio de fetos e toda banhada de sangue, com graves ferimentos na cabeça. Maria parecendo esboçar um movimento, cria uma expectativa de vida. Afinal a Maria não estava morta. Diz-me, ó minha querida filha quem te pôs neste estado! E ela, por entre um ai de dor, profere o nome do criminoso: José Quinteiro… e torna a cair num estado de inconsciência, não dando até chegar a casa nenhum sinal de vida.

Ao chegar à sua residência, a martirizada filha recupera, de novo, os sentidos. Chovem as perguntas: ó minha querida filha quem foi que te fez isto? O pai afirma que foi o José Quinteiro.

Entretanto, muitos populares da vizinhança acorrem a casa da Isabel Vieira e do Júlio Sapateiro. As pessoas estão perturbadas. Então, alguém disse para irem buscar a coroa do Divino Espírito Santo. António Vieira, vizinho e familiar (primo segundo) vai buscar uma coroa a casa dos pais, a escassos metros. Deus iria permitir que a moribunda confessasse toda a verdade e indicasse o nome do criminoso. E assim se fez. Foi trazida a coroa, no momento em que Maria Vieira estava nos braços da tia Maria Vicente Vieira. E a pedido dos presentes que a rodeavam, confirmou o nome do aggressor: <<Foi José Quinteiro!>>, acrescentando ainda às várias pessoas ali presentes que ele a agredira por ela ter recusado praticar actos desonestos com ele. E nada mais acrescentou.

Os primeiros e mais elementares tratamentos às feridas são feitos ainda em casa.

Contudo, é no momento em que o pai de Maria Vieira sobe o Arrabalde, indo até ao centro da povoação, que a notícia da tragédia se espalha por toda a Vila. Há quem se prontifique a telefonar para o Comando da Polícia e para o Hospital de Angra. Entrementes, alguém, no meio da barafunda, afirma que o comandante distrital da polícia, o Capitão João Coelho Borges, e o delegado de saúde, Dr. Henrique Henriques Flores, vêm já a caminho da Vila. Chama-se o Pe. Joaquim Esteves, o pároco, para confortar as pessoas, sobretudo os parentes, naquele difícil transe. Quanto à vítima, em aparente estado de coma, nada se podia fazer.

A todo o momento esperava-se a chegada do delegado de saúde. Para ganhar tempo improvisa-se uma maca com um lençol e o corpo de Maria Vieira é transportado pelo caminho do Arrabalde. O Dr. Henrique Henriques chega, aplica-lhe uma injecção e a moribunda é conduzida de urgência para o Hospital de Santo Espírito. Eram quatro horas e meia da tarde daquele dia feriado, por causa das comemorações centenárias de Portugal.

Após o exame no Hospital de Santo Espírito, pergunta ingenuamente à avó. “Eu não fico melhor? Nem me dão um remédio?” A acompanhante chama a ajudante de enfermeira Cecília Pimentel que lhe dá uma cápsula e interroga-a:

-Maria, quem te fez tanto mal? O tio José Quinteiro, respondeu.

-Tens-lhe raiva?

-Não lhe tenho raiva…e não lhe façam mal.

Pouco depois diz à avó: “Avó, estou melhorzinha, sabe avó, ninguém quer morrer”. Em seguida, é conduzida para o bloco operatório para lhe fazerem a delicada operação à cabeça. Resistiria mal à intervenção cirúrgica. Regressa ao leito da morte, que a espreita, sendo ungida pelo Padre Lima. O seu estado de semi-inconsciência anunciava o seu fim breve. Passadas 25 horas sobre a tragédia do Arrabalde da Vila, Maria Vieira entregava a alma ao Criador. Era o inevitável e esperado epílogo. Tudo estava consumado.

Ficaria sepultada no cemitério da Conceição de Angra do Heroísmo, devido aos fracos recursos económicos dos pais.

– Do livro ‘Maria Vieira Mártir dos Açores’ de António Neves Leal, 3a Edição Aumentada

timeline_pre_loader
1926-1940

11/11/1926

Nasce Maria Vieira da Silva na freguesia de São Sebastião, Ilha Terceira, Açores

14/11/1926

Maria Vieira é Batizada

1932

Primeira Comunhão

1936

Comunhão Solene

1936

Exame da Quarta Classe

4/6/1940

Maria Vieira é atacada violentamente por José Quinteiro
1941-Presente

1947

Primeira Exumação

Finais dos Anos 40

Primeira cruz; começo do culto ao sítio do martírio

11/6/1955

Primeiras duas pagelas

1957

O culto ao local do martírio aumenta

Finais dos Anos 70

Começam as obras da Ermida de Nossa Senhora Peregrina

4/6/2000

Trasladação dos restos mortais do Cemitério da Conceição de Angra do Heroísmo para o Cemitério da Vila de São Sebastião